sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Jovens poetas europeus: Antoine Wauters


Antoine Wauters

No ano passado, a editora de Francisco dos Santos, a Lumme Editor, lançou o volume De pé sobre a língua / Debout sur la langue (São Paulo: Lumme Editor, 2011), com a tradução integral de Juliana Bratfisch para o volume de poemas de meu amigo belga, o poeta Antoine Wauters (Lieja, 1981), para o qual escrevi uma pequena introdução. Trata-se do volume pelo qual Wauters recebeu o prestigioso prêmio da Academia Real de Língua e de Literatura Francesas da Bélgica. Conheci Antoine através de outro poeta e amigo belga, Damien Spleeters (Bruxelas, 1986), e após nos correspondermos por um tempo, trocando informações e trabalhos, conheci-o pessoalmente em Lieja, Bélgica, quando participei ali da Bienal Internacional de Poesia, realizada desde a década de 50 na Universidade de Lieja. Gosto muito de Antoine e tenho muito respeito por seu trabalho. Preparei uma postagem para a Modo de Usar & Co. com alguns trechos (escolhidos por Antoine para sua leitura em vídeo) do volume traduzido, assim como a tradução inédita de Juliana Bratfisch para um trecho de Césarine de nuit, um romance em versos que está prestes a ser lançado na França, talvez meu trabalho favorito dentre os volumes de poemas de Antoine. A postagem tem dois vídeos: um preparado em Beirute, Líbano, quando Wauters leu na cidade; e outro preparado pelo próprio poeta, filmado por sua irmã Lorraine Wauters, especialmente para a Hilda Magazine e a Modo de Usar & Co.. Informações sobre o lançamento oficial para o volume de Antoine Wauters em SP, ao fim desta postagem. Este volume lançado pela Lumme Editor é o primeiro de uma coleção de poetas estrangeiros jovens que estou organizando para a editora. Se você está traduzindo um bom poeta contemporâneo estrangeiro (de preferência jovem) para o português, entre em contato comigo.


POEMAS DE ANTOINE WAUTERS


Antoine Wauters lê excertos de seu livro Césarine de nuit, em Beirute, Líbano. (Nota: este vídeo traz uma versão mais antiga do poema, e não corresponde exatamente aos excertos e à tradução abaixo. Pela beleza do vídeo e da leitura de meu caríssimo Antoine Wauters, mostro-o aqui).


Césarine de noite (excertos)

E ela invade os corredores, os
quartos vazios, o grande refeitório quase
tão vazio exceto pela mesa posta, vestida
de linho ou tricô, e no alto das
coxas um pequeno shorts curto do tamanho
de um lenço, uma sainha com cem dobras. Todo mundo
dormiu, ela diz, ou todo mundo morreu,
e agora seu olhar vai de um pedaço de muro
à trinca da porta, da trinca da porta à
janela do ateliê, ao quadriculado de estrelas onde
fica.

Césarine das bacias, das máquinas, dos
trabalhos de costura em que ela se liberta
em rumores. Pois é assim. Fazem-na
pregar cada dia pequenas meninas e
meninos de algodão, bem leves pompons com
zíper e velcros. À noite passam
comerciais, essas crianças de laicra bem costuradas
e ligadas em magros sacos plásticos que
jogamos em seguida na água. Na cidade. Nas
grandes cidades aqui e ali.
Não é dito onde.

Prendemo-na aos anéis, ao metal de aço.
Suas mãos, dedos, fixados no alfinete feito
para isso, a um ponto menos alto que
a janela e sua trinca. Temos o cordão, a
corrente e cartuchos de batom nos
quais lavamos dentes, gritos e raiva.
Vamos pra ela com calços, nossas pequenas
vigas delicadas e vontade de consolá-la.
Ouví-la. Vê-la sorrir.

Desangulamo-na com a noite que cai, com
a lua que vem tomá-la e levá-la pra
cidade, nas galerias onde vejam: gentilmente
caminhando com cores vivas, com
frascos, dez vidros de perfume de laranja e
leite, com urina de urso negro talvez,
por que não, com anéis, cinturões
cobreados ou couro branco que captam o olho.
Mas nenhum lábio branco, nenhum sorriso de
cerva ou de jovem feliz assim caminhava.

Braceletes, colares de pérola com areia
das ilhas longínquas que é preciso imaginar terríveis,
sujas, bem menos práticas que nossa bela
grande cidade com seu rio de alumínio e
seus restos dourados, ornando Césarine. Docemente,
a cobrimos de matérias do tempo. E qual
alegria de a fazer usar, espartilhar, revestir com
o mais antigo e mais novo tecido: linho, cetim e
claro elasteno, que torna leves suas
lingeries e suas camisas de verão.

Docemente, pois é assim, sempre, nela
encucamos o necessário, a ordem que é preciso
à ordem e em seu corpo e seu espírito, e
como se mover, como estar e
se comportar nesse vasto mundo.
Depois vem a noite. Depois, a noite
que ela quer ainda longamente, potentemente
sentir nela como um lugar salvo ou
inviolado, oferecemos um bafo de ar, um esquina
no parque onde respirar.

(tradução de Juliana Bratfisch)


:

Césarine de nuit
Antoine Wauters

Et elle s’engouffre dans les couloirs, dans les
chambres vides, dans le grand réfectoire à peu
près aussi vide sauf le couvert dressé, vêtue
d’un linge ou d’un tricot, et sur le haut des
cuisses un petit short court de la taille
d’un mouchoir, une jupette aux cents plis.
Tout le
monde dort, dit-elle, ou tout le monde est mort,
et maintenant son regard va d’un pan de mur
au verrou de la porte, du verrou de la porte à la
fenêtre de l’atelier, au carrelage étoilé où elle
gît.

Césarine des bassins, des machines, des
travaux de couture dont elle s’acquitte tout en
bruissements. Car c’est ainsi. On lui fait
accoucher chaque jour de petites filles et petits
garçons de coton, de bien légères pelotes à
tirettes et velcros. Le soir on lui réclame ses
marchandises, ces enfants de lycra bien serrés
et liés dans de minces sacs plastique qu’on
expédie ensuite par l’eau. À la ville. Aux
grandes villes d’ici et là-bas.
On ne vous dit pas où.

On l’attache aux anneaux, au métal d’aciérie.
Ses mains, dans le dos, fixées au crochet prévu
à cet effet, à un point à peine moins élevé que
la fenêtre et son verrou. On a le cordeau, la
chaînette, et des cartouches de rouge à lèvres
dont on lui lave les dents, les cris et la colère.
On vient à elle avec des lattes, nos petites
verges délicates et l’envie de la consoler.
L’entendre. La voir sourire.

On la dessangle avec le soir qui tombe, avec la
lune qui vient la prendre et on l’emmène en
ville, dans les galeries où la voici : gentiment
promenée avec des couleurs vives, des
flasques, dix flacons de parfum à l’orange et
au lait, à l’urine d’ours noir peut-être,
pourquoi pas, avec des boucles, des ceinturons
cuivrés ou en skaï blanc qui captent l’œil.
Mais aucune lèvre blanche, aucun sourire de
biche ou de jeune fille heureuse ainsi promenée.

De bracelets, de colliers de perles avec le sable
d’îles lointaines qu’il faut imaginer terribles,
sales, bien moins pratiques que notre belle
grande ville avec son fleuve d’aluminium et
ses rebuts dorés, on orne Césarine. Doucement,
on la couvre des matières du temps. Et quelle
joie de lui faire porter, la corseter, la revêtir du
plus ancien au plus nouveau tissu : lin, satin et
bien sûr élasthanne, qui rend légers ses sous-
vêtements et souples ses chemises d’été.

Doucement, car c’est ainsi, toujours, on lui
inculque le nécessaire, l’ordre qu’il faut à
l’ordre et à son corps et son esprit, et
comment se bien mouvoir elle, comment se
bien tenir et comporter dans ce vaste monde.
Après quoi est la nuit. Après quoi, à la nuit
qu’elle veut encore longuement, puissamment
ressentir en elle comme un lieu sauf ou
inviolé, on lui offre un brin d’air, un coin de
parc où respirer.



§




Antoine Wauters lê fragmentos do seu livro Debout sur la langue, em Lieja, Bélgica.
Especial para a Modo de Usar & Co. e a Hilda Magazine.


Poemas do volume De pé sobre a língua / Debout sur la langue
(São Paulo: Lumme Editor, 2011). Traduções de Juliana Bratfisch.

(nota: infelizmente, não é possível reproduzir aqui os "blocos de texto" com os quais Wauters geralmente diagrama seus poemas. Respeitamos as quebras de linha no livro original.)

Tudo parte dum jato de sangue, um
apelo rubro ao corpo. De um precisar
passar, ser passado, atravessado sem
demora. Um precisar escutar mais
que falar. Tudo parte de um grito
raio vindo de baixo, balbucio ou diabo,
denso às entranhas.

Tout part d’un coup de sang, d’un
appel rouge au corps. D’un besoin
de passer, d’être passé, traversé sur-le-
champ. D’un besoin d’entendre plus
que de parler. Tout part d’un cri
éclair venu d’en bas, babil ou diable,
dense aux entrailles.

§

Tudo parte duma batida surda,
regular como um sopro de noite,
primitiva como a terra. Dum canto
precedente a linguagem e sobre o qual
pousam, repousam restos: nossas
línguas cem vezes demolidas.

Tout part d’un battement sourd,
régulier comme un souffle de nuit,
primitif comme la terre. D’un chant
précédent le langage et sur lequel
pose, repose tout l’éboulis : nos
langues cent fois moulues.


§

Falar é uma passagem, um
passar, um ato de descompressão
entre a orelha da terra e a orelha do
baixo ventre, um pó procurando
filtrar, infiltrar o vivo, a fenda azul
do escafandro, corpo ou língua,
nossa noite.

Parler n’est qu’un passage, un
passer, un sas de décompression
entre l’oreille de terre et l’oreille de
bas-ventre, une boue cherchant à
filtrer, infiltrer le vivant, l’ajour bleu
du scaphandre, corps ou langue,
notre nuit.


§

Pés no chão, cabeça entre as mãos no
solo, firmando um mundo cravado cujo
denso e redondo apelo, denso e redondo
canto, eu me aterro. O corpo é
uma orelha, um rochedo martelando.
Nos fala e nos fende, nos
desfaz e nos mina. Falado, fendido,
é também rompido, desfeito de um
apelo. Escuta.

Pieds à plat, tête en mains dans le
sol, foulant un monde enfoui dont
dense et rond l’appel, dense et rond
le chanté, je me terre. Le corps est
une oreille, un rocher martelant. Il
nous parle et nous fend, nous
déchire et nous mine. Parlé, fendu,
il est aussi rompu, déchiré d’un
appel. Il entend.


§

A língua como uma cena onde
desperta uma voz. Louca. Selvagem.
Que é a voz primeira, palavra,
antes a fala, muda ou batendo
longa. Um ruído. Há ruído. Algum
infinitamente mais belo que nossas
musicas sem elos.

La langue comme une scène où
déboule une voix. Folle. Sauvage.
Qui est la voix première, parole
d’avant le mot, muette ou battant
longue. Un bruit. Du bruit. Un
infiniment plus beau que nos
musiques sans os.



§

Isso que eu digo vem tanto da terra
quanto do mar. Do ventre da terra e
do mar do ventre. Dia e noite
sem repouso, palavras são postas sobre
a têmpora, azul, frágil, da crosta
terrestre. Assim que digo escrevo,
talvez só seja preciso escutar
que me inclino, estico a mão, coleto
rochas e rochedos sonoros.

Ce que je dis vient de la terre autant
que de la mer. Du ventre de terre et
de la mer du ventre. Jour et nuit
sans repos, les mots sont posés sur
la tempe, bleue, fragile, de la croûte
terrestre. Lorsque je dis j'écris, peut-
être ne faut-il rien entendre d'autre
que je me penche, tends la main, ramasse
rocs et rochers sonores.


§


O corpo é mergulhado na greda
que, bem no fundo, é fogo,
água corrente rubra, soberana. É
nessa aliança emergida ao
ventre, que juntas, mão na
mão, fundam o espaço e o tempo.
Aqui o corpo volta ser a orelha do
mundo e, batendo surdo o sangue, dá
luz às vozes.

Le corps est plongé dans la glaise
qui, tout au fond, est du feu, de
l'eau filant rouge, souverraine. C'est
là, dans cette alliance montée au
ventre, qu'ensemble, main dans la
main, fondent l'espace et le temps.
Là que le corps redevient l'oreille du
monde et, battant sourd le sang, en
accouche les voix.


§


A língua, sigo em todos os sentidos,
pressiono de minhas peles até
parti-la limpa, absorvê-la em seu centro.
Depois me endireito, de pé, pés
aterrados firmemente, como uma
orelha fixa no buraco do fundo, uma
palma aberta sobre o mundo
interior que me precede e mesmo,
me preexiste.

La langue, je la cours en tous sens,
la pétris de mes peaux jusqu’à la
briser net, l’avaler en son centre.
Puis je m’y tiens droit, debout, pieds
terrés fermement, comme une
oreille vissée au trou du fond, une
paume ouverte sur un monde
intérieur qui me précède et même,
me préexiste.



§

Passo um verbo. Passo uma ação mas
não um lugar, espaço litúrgico. Escrever.
Desviar em direção a um templo, um
santuário onde em paz com o céu, a
terra, se afagam quem sou eu e quem
não sou mais. Onde o corpo se recompõe,
livre, nu, animal e jogador, ventre
membrana aos sons.

Pas un verbe. Pas une action mais
un lieu, un espace liturgique. Écrire.
Dériver vers un temple, un
sanctuaire où en paix avec le ciel, la
terre, se frôlent qui je suis et qui je
ne suis plus. Où le corps se rejoint,
libre, nu, animal et joueur, ventre
membrane à sons.



§

Aqui onde creio dizer, não digo nada
ainda. E aqui onde creio falar, são
as palavras que me falam,
me desventram e muito doces, muito
docemente me sopram, como se
dissessem de alguém que nos
toma alguma coisa. Soprado, esvaziado,
de medula e sal, outras vozes me
passam, dançam em roda, me
afagam.

Là où je crois dire, je ne dis rien
encore. Et là où je crois parler, ce
sont les mots qui me parlent,
m’éventrent et très doux, très
doucement me soufflent, au sens où
l’on dit de quelqu’un qu’il nous
prend quelque chose. Soufflé, vidé
de moelle et sel, d’autres voix me
passent, dansent en rond, me
faufilent.



§


De pé sobre a língua e subir.
Subir uma fera de espuma,
acariciá-la com fibras, baquetas e
caprichos, o todo tenso, arqueado três
vezes para romper a amarra, coleira
ligando a todos, às palavras muito
banais. Ocas e sem sopro.
Exangues.

Debout sur la langue et monter.
Monter une bête d’écume, la
caresser de fibres, de mailloches et
tocades, le tout tendu, cambré trois
fois pour rompre l’attache, la laisse
liant à tous, aux paroles très
bouchées. Creuses et sans souffle.
Exsangues.



§

Pequena introdução ao trabalho de Antoine Wauters
por Ricardo Domeneck


Antoine Wauters nasceu em 1981, em Lieja (Bélgica), uma das cidades mais importantes da Valônia (Liège em francês, Luik em holandês, Lüttich em alemão e Lîdje em valão, quatro das línguas faladas no território). O poeta teve uma estreia tripla em 2008, lançando ao longo do ano os pequenos volumes Os (Lieja: Tétras-lyre, 2008), La Bouche en quatre (Bruxelas: Le Coudrier, 2008) e Debout sur la langue (Bruxelas: Maelström, 2008). Foi por este último, traduzido na íntegra por Juliana Bratfisch e lançado em edição bilíngue no Brasil no ano passado pela editora de Francisco dos Santos - De pé sobre a língua / Debout sur la langue (São Paulo: Lumme Editor, 2011) – , que Antoine Wauters recebeu o prêmio da Academia Real de Língua e de Literatura Francesas da Bélgica, marcando-o como um dos nomes a seguir na jovem poesia francófona. Desde então, seu trabalho foi publicado na França em antologias como La nouvelle poésie française de Belgique (Châtelineau: Le Taillis-pré, 2010) e Trois poètes belges (Dijon: Editions du Murmure, 2010), onde também foi lançado seu quarto livro, Ali si on veut (Cheyne Editeur, 2010). Em fevereiro de 2012, a mesma Cheyne Editeur lançará seu livro Césarine de nuit, enquanto o poeta segue trabalhando em seus romances Celle qui dort e
Nos mères,.

Antoine Wauters cresceu na campagne, numa pequena vila valona das Ardenas. Em 1999, iniciou seus estudos de filosofia em Bruxelas, nos quais declarou ter descoberto e recebido a influência duradoura e transformadora de Nietzsche, Foucault, Kierkegaard, Lévinas, e de autores como o austríaco Thomas Bernhard. Especializou-se e escreveu sua tese no campo da Bioética, estudando e discutindo os perigos do movimento tecnófilo conhecido como “Trans-humanismo”, dos Estados Unidos. Entre 2004 e 2005, trabalhou como ativista em campanhas médicas contra a epidemia da AIDS em Burquina Fasso e ensinou literatura e teologia em um colégio de Bruxelas, antes de retornar à sua cidade natal em 2006, onde segue hoje ensinando literatura e teologia. Em 2007, conheceu o importante poeta belga Jacques Izoard (1936 - 2008), também natural de Lieja, que se tornaria um mestre e incentivador, encorajando Antoine Wauters à publicação tripla do ano seguinte que já mencionamos. O poeta já se apresentou em festivais de poesia francófona da Bélgica, França, Suíça e Luxemburgo, e é também dramaturgo e romancista. Atualmente, colabora como roteirista com o jovem cineasta Antoine Cuypers.

Na Bélgica, seu trabalho já foi comparado ao de outros autores nascidos em Lieja, como o do próprio Jacques Izoard por sua pesquisa acentuadamente sintática, ou o de Eugène Savitzkaya (n. 1955) por sua escrita marcada pela obsessão com as relações entre som e sentido. A um leitor brasileiro, creio que o texto meditativo de Wauters neste pequeno volume, que faz seu percalço entre a linguagem como abstração e a língua como concreção, tendo o corpo humano por filtro, poderá lembrar certas páginas de Clarice Lispector em um texto como Um sopro de vida: pulsações (1978). Entre os poetas brasileiros contemporâneos, poder-se-ia traçar algumas semelhanças entre sua poética e o que já chamei de lírica analítica em poetas como o paulista Marcos Siscar (n. 1964) e a carioca Marília Garcia (n. 1979). Não são comparações visando qualquer efetivação de uma uniformização ou hierarquia, mas uma tentativa de compreender as relações subterrâneas entre poesias de línguas distintas através, talvez, de mestres comuns. Leitores familiarizados com certa escrita francófona da década de 70 e 80, como a de Emmanuel Hocquard ou Christophe Tarkos, poderão pensar talvez em túneis subterrâneos conectando as poesias contemporâneas da Bélgica e do Brasil.

Uma das primeiras questões que o trabalho de Antoine Wauters poderá levantar é a de gênero. Em geral, identificamos primeiro a textualidade de cada autor dentro de um gênero específico e então passamos a julgá-la a partir das suas convenções. Em blocos de signos, seus fragmentos poderiam ser identificados tanto como prosa quanto como poesia. A questão interessa apenas na medida em que influencia a recepção do trabalho. Linguagem que se volta sobre si mesma, com a chamada função poética de Jakobson presente, o texto de Antoine Wauters funciona na fronteira entre transparência e não-transparência do signo. Aqui, falaríamos não tanto de sua materialidade quanto de sua opacidade. A algumas pessoas no Brasil, com a influente pesquisa iniciada pelo Grupo Noigandres na década de 50 com foco na materialidade do signo, sua concretude, a escrita de Antoine Wauters poderá parecer, em certos aspectos, abstrata. O que me parece interessante observar é justamente o delicado e quase precário equilíbro entre abstração e concretude que seu trabalho gera. Língua torna-se tanto o sistema de signos que forma nossa linguagem como o órgão carnal que usamos para movimentá-la. Ao verbivocovisual, muitos poetas contemporâneos unem uma preocupação com o uso da palavra na língua como parte integrante do seu significado, tal qual preconizou Wittgenstein em uma das proposições das Investigações filosóficas (1953). Assim, o poeta joga com semântica, sintaxe e contexto, o que poderia ligar Antoine Wauters, no âmbito brasileiro, talvez à pesquisa experimental de outros poetas da década de 50, como Ferreira Gullar e Mário Chamie. Sua escrita opera um borrar de certas dualidades, chamando nossa atenção para o debate sobre o objetivismo celebrado por certa poesia contemporânea, unido a aquilo que a crítica norte-americana Marjorie Perloff chamou de uma poética da indeterminação. Sua escrita é uma meditação com o corpo, através da língua (sistema de comunicação comum a uma comunidade linguística) e da língua (órgão móvel da cavidade bucal), em nome da língua e da língua.


NOTA DO AUTOR: O texto acima foi publicado, com pequenas alterações, como introdução ao volume De pé sobre a língua / Debout sur la langue (São Paulo: Lumme Editor, 2011). Em trabalhos mais recentes, Antoine Wauters tem borrado a fronteira entre gêneros estanques, praticando uma textualidade com forte presença da narratividade, como podemos ver no excerto de seu próximo livro, Césarine de nuit, no início desta postagem: "Et elle s’engouffre dans les couloirs, dans les / chambres vides, dans le grand réfectoire à peu / près aussi vide sauf le couvert dressé, vêtue / d’un linge ou d’un tricot, et sur le haut des / cuisses un petit short court de la taille / d’un mouchoir, une jupette aux cents plis. Tout le monde dort, dit-elle, ou tout le monde est mort (...)"


§



LANÇAMENTO

Lumme Editor e Club Noir, com apoio da Modo de Usar & Co., convidam para o lançamento de De pé sobre a língua / Debout sur la langue (São Paulo: Lumme Editor, 2011), do poeta belga Antoine Wauters (Lieja, 1981), com tradução de Juliana Bratfisch, e para uma noite de leituras em que poetas contemporâneos brasileiros leem suas traduções para textos de poetas contemporâneos estrangeiros.

Juliana Bratfisch lê Antoine Wauters (Bélgica).

Ricardo Domeneck lê Ezequiel Zaidenwerg (Argentina), Robin Myers (Estados Unidos) e Monika Rinck (Alemanha).

Dirceu Villa lê Anne Carson (Canadá) e Mairéad Byrne (Irlanda).

Fabiano Calixto lê Heriberto Yépez (México).

Mario Sagayama lê Christophe Tarkos (França).

No dia 17 de janeiro de 2012, terça-feira, a partir das 22:00.

Club Noir
Rua Augusta, 331
Consolação
São Paulo SP





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2 comentários:

músicas e poesias e impressões do ADEILTON disse...

olá
RICARDO DOMENECK
saudações

Ricardo, meu caro, na poesia do belga ANTOINE W., acho que tem um erro no trecho:"...Um ruído. Há ruído. Algum
infinitamente mais belo que nossas
musicas sem elos..." O correto seria: ALGO , no lugar de algum??
Abraço metafórico/metal eufórico de ADEILTON

Ricardo Domeneck disse...

Caro Adeilton,

a tradução é de Juliana Bratfisch, vou encaminhar seu comentário a ela.

Obrigado pela atenção e interesse!

abraço

Ricardo

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